terça-feira, 25 de agosto de 2009

O permanente holocausto negro


por: Ricardo Gondim

A formação cultural brasileira tem graves deformações. Desde seus primórdios matriciais, tantos índios como negros pagaram o mais caro preço para que nascesse esta nação que fala português, come farinha de mandioca e tem compulsão por tomar banho.Leio Darcy Ribeiro e quedo-me espantado pelas injustiças toleradas contra Tamoios, Tupinambás, Tupiniquins, Tabajaras e tantas outras etnias que sofreram horrores em nome da “civilização”. Pergunto-me porque a religião não percebia tantas injustiças praticadas em nome do progresso. Por que não houve mais profetas defendendo a justiça com o dedo em riste?
Os negros arcaram com um ônus incalculável. Em “O Povo Brasileiro” – A Formação e o sentido do Brasil” (Cia das Letras) – Darcy Ribeiro descreve os horrores sofridos pelos negros. Que foram esses negros? Nina Rodrigues ressalta que os escravos brasileiros vinham de três grandes grupos: Os da cultura sudanesa, principalmente os Yorubas ou Nagôs; os Peuhuls, vindos do norte da Nigéria, também chamados de Malé; e os negros do grupo congo-angolês, principalmente os Bantus, seqüestrados da região onde hoje fica Angola.Minha leitura de Darcy Ribeiro não serve para suscitar ódios ou ressentimentos históricos. Percebo, porém, que séculos depois, seus descendentes ainda vivem, em larga escala, sub-empregados, amontoados em favelas; continuam a contemplar seus filhos morrendo prematuramente.
No Brasil, as elites insistem na defesa de seus bens. Para elas, o capital vale infinitamente mais que a vida da patuléia. Gente pode ser gasta, contanto que se preservem as “conquistas” patrimoniais. Somos um povo que nasceu insensível aos horrores da escravidão; e fomos um dos últimos a erradicá-la do globo. Nos dias atuais, quem defende o pobre, partilha da mesma sorte dos abolicionistas; sofre um ostracismo semelhante ao de Castro Alves com seu “O navio negreiro”. Ele era considerado um desestabilizador da economia. O Brasil não podia sair abruptamente dos horrores do sistema que considerava seres humanos meras bestas, e por incrível que pareça, séculos depois, ainda não pode.
O relato de Darcy Ribeiro é preciso e chocante:
“ Conscritos nos guetos de escravidão é que os negros brasileiros participam e fazem o Brasil participar da civilização de seu tempo. Não nas formas que a chamada civilização ocidental assume nos núcleos cêntricos, mas como as deformações de uma cultura espúria, que servia a uma sociedade subalterna. Por mais que se forçasse um modelo ideal de europeidade, jamais se alcançou, nem mesmo se aproximou dele, porque pela natureza das coisas, ele é inaplicável para feitorias ultramarinas destinadas a produzir gêneros exóticos de exportação e de valores pecuniários aqui auridos....
A empresa escravista, fundada na apropriação de seres humanos através da violência mais crua e da coerção permanente, exercida através dos castigos mais atrozes, atua como uma mó desumanizadora e deculturadora de eficácia incomparável. Submetido a essa compreensão, qualquer povo é desapropriado de si, deixando de ser ele próprio, primeiro, para ser ninguém ao ver-se reduzido a uma condição de bem semovente, como um animal de carga; depois, para ser outro, quando transfigurado etnicamente na linha consentida pelo senhor, que é a mais compatível com a preservação do seus interesses.
O espantoso é que os índios como os pretos, postos nesse engenho deculturativo, consigam permanecer humanos. Só o conseguem, porém, mediante um esforço inaudito de auto-reconstrução no fluxo do seu processo de desfazimento. Não têm outra saída, entretanto, uma vez que da condição de escravo só se sai pela porta da morte ou da fuga. Portas estreitas, pelas quais, entretanto, muitos índios e muitos negros saíram; seja pela fuga voluntarista do suicídio, que era muito freqüente, ou da fuga, mais freqüente ainda, que era tão temerária porque quase sempre resultava mortal. Todo negro alentava no peito uma ilusão de fuga, era suficientemente audaz para, tendo uma oportunidade, fugir, sendo por isso supervigiado durante seus sete a dez anos de vida ativa no trabalho. Seu destino era morrer de estafa, que era sua morte natural. Uma vez desgastado, podia ser até alforriado por imprestável, para que o senhor não tivesse que alimentar um negro inútil.
Uma morte prematura numa tentativa de fuga era melhor, quem sabe, que a vida do escravo trazido de tão longe para cair no inferno da existência mais penosa. Sentido que é violentado, sabendo que é explorado, ele resiste como lhe é possível. ‘Deixam de trabalhar bem se não forem convenientemente espancados’, diz um observador alemão, ‘e se desprezássemos a primeira iniqüidade a que os sujeitou, isto é, sua introdução e submissão forçada, devíamos de considerar em grande parte os castigos que lhes impõem os seus senhores’. Aí está a racionalidade do escravismo, tão oposta à condição humana que uma vez instituído só se mantém através de uma vigilância perpétua e da vigilância atroz da punição preventiva.
Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro – mercador africano de escravos – para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente, bugigangas. Dali partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda puxada até o porto e o tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por meios e meio o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía no outro mercado, do lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e dos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava à terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia, todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua capacidade de trabalhar no dia seguinte até a exaustão.
Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém – seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio – inimigos –, maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo dia o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar; na forma de mutilação de dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sub trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinqüenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela para arder como um graveto oleoso.
Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.
A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ele é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar, e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária”.
Você e eu somos algozes e vítimas. Que Deus tenha misericórdia de nós e que possamos, a partir de nossos escombros históricos, construir um Brasil mais justo para com o negro e com todos seus descendentes.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Ação afirmativa para afro-descendentes e democracia no Brasil


Cotas

Por Wania Sant'Anna.

Considerando o quadro de desigualdade racial no Brasil, situação que atinge de forma tão singular e definitiva uma parcela substancial da população - os afro-descendentes - não há dúvida sobre o caráter salutar do debate público sobre o assunto. Isso demonstra o compromisso que devemos ter com as estratégias de fortalecimento da democracia e,igualmente, a necessidade de encontrarmos, oletivamente, as saídas sustentáveis de superação da desigualdade social no país.
Há cerca de três meses atrás, uma publicação editada por essa mesma Universidade,Universidade do Estado do Rio de Janeiro, me perguntou como eu avaliava os projetos de reserva de vagas para os alunos de escolas públicas e afro-descendentes. Hoje, como há três meses atrás, mantendo a mesmíssima opinião. Vejo a iniciativa como a única possibilidade de o Estado brasileiro demonstrar um efetivo interesse em superar as desigualdades raciais existentes no País. No que diz respeito às universidades, vejo como uma medida de caráter singularmente estratégico e de compromisso em superar as desigualdades raciais no Brasil,expressar à sociedade brasileira sua função social e, ao mesmo tempo, reconhecer a importância que as organizações do movimento depositam junto essas universidades ao considerá-las como instituições fundamentais à institucionalização de políticas de ação afirmativa para a população afro-descendente.
Nesse sentido, as resistências até então apresentadas pelas universidades públicas,contrapondo-se a uma legítima demanda de um grupo social como os afro-descendentes, eu diria, comprometem o fortalecimento da democracia no país. Na verdade, é difícil deixar de reconhecer que as organizações do movimento negro têm expressado, em diversos momentos da história do país, o seu compromisso com a instituição de instâncias democráticas e que, na última década, são inúmeros os exemplos de reconhecimento de suas demandas. Assim, as resistências apresentadas pelas universidades públicas deveriam ser analisadas à luz desse contexto.
Na essência, não deveríamos esquecer o fato de a população afro-descendente constituir o grupo de menor acesso aos benefícios sociais na sociedade brasileira, não há como negar o caráter democratizador dessa política. Por outro lado, não deveríamos esquecer o fato de os afro-descendentes pagarem impostos como todos os demais cidadãos e constituir uma falta grave o fato de não ter garantido o direito de usufruir desses serviços de educação pública.
Na minha opinião, seríamos mais conseqüentes em nossas opiniões ao considerarmos a presença da população afro-descendente nos círculos das universidades públicas como uma oportunidade de ampliar as habilidades desse grupo e, conseqüentemente, ampliar a sua contribuição cultural, política, social e econômica ao país. Parece inadequado que as universidades públicas, corpo e docente e dissente, não tenham contato direto e no mesmo nível com outros segmentos de classe da sociedade brasileira. Não parece adequado que as universidades públicas brasileiras sejam constituídas na sua grande parte por segmentos que desconhecem, no contato cotidiano, a realidade cultural, política, econômica e social de um segmento que constitui 45% da população brasileira.
Como afro-descendente, eu diria que há muito a ser trocado, há muito a ser conhecido nessa relação. Há muito a ser afirmado como compromisso de responsabilidade recíproca e fortalecimento dos fundamentos da democracia, da igualdade, da eqüidade e, finalmente, bom senso.
Em artigo especialmente preparado para subsidiar os debates nacionais que precederam a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, eu mencionava que são raros os momentos dedicados à reflexão sobre as conseqüencias do preconceito e discriminação racial.
Junto ao grande público, a situação mais comum está relacionada à divulgação dos casos de discriminação e ofensas vividos por afro-descendentes em contato direto com pessoas brancas e/ou ditas brancas. Uma vez divulgados, não raro, o sentimento mais generalizado é a indignação.
Classificar o ato como expressão da ignorância e falta de educação também constitui um argumento fartamente presente. Em ambos os casos revela-se o apego ao ideal de democracia racial do povo brasileiro. Afinal, como é mesmo possível encontrar pessoas que não tenham absorvido as regras de convivência requerido ao ideal de democracia racial e, em situações cotidianas, exponham de forma tão inusitada o seu descontentamento e descompromisso com o esse ideal?
"Descupai-vos. Eles não sabem o que dizem!" Seria uma saída, além de baseada em princípios de fé, para fornecer a esses de compreensão limitada do ideal de democracia racial a oportunidade de redimir tanto a conduta quanto os valores interpretativos frente à população afro-descendente. No entanto, isso não é suficiente. Por que? Porque os casos divulgados são apenas a de um grande iceberg. Não é verdade que vivamos sob o manto da democracia racial e aqueles que discriminam são os mais expressivos exemplos da fragilidade do ideal.
Em 1995, quando o Instituto Data-Folha realizou o que denominou "a maior e mais ampla pesquisa sobre preconceito de cor no Brasil", foi introduzida uma pergunta muito simples e direta sobre o assunto: "Na sua opinião, no Brasil os brancos têm preconceito de cor em relação aos negros?" Entre os entrevistados, 89% declaram que sim e, apenas 9% disseram que não. Entre os brancos os percentuais foram exatamente iguais. Entre os "pardos", 88% disseram que sim e 10% disseram que não. Entre os pretos", 91% disseram que sim e 8% disseram que não. Ou seja, o ideal, tanto para os brancos como para os afro-descendentes, é realmente frágil.
Nas três últimas décadas, as organizações do movimento negro têm sido incansáveis na demonstração de fatos que comprovam o tratamento diferenciado dispensado à populaçãoafro-descendente. Neste sentido, essas organizações contribuíram para a destituição da idéia generalizada de que o Brasil "constituía" uma democracia racial. De fato, tomar para si a tarefa de dizer que não vivíamos sob uma democracia racial foi, antes de mais nada, um ato político de grande envergadura. Recusou-se, assim, o ideal de identidade nacional baseado na exclusão de um grupo que, sem sombra de dúvidas, constitui hoje, tanto quanto no passado,recurso humano impossível de ser ignorado para qualquer pessoa preocupada com o destino do país.
Enfim, a despeito do que alguns setores tentam nos fazer crer, a crítica elaborada pelo movimento negro sobre a precariedade em que vive os afro-descendentes e suas propostas de superação desse quadro não significa alimentar divisionismo ou estabelecer privilégios infundados. Ao contrário, as demandas do movimento negro qualificam tanto o debate sobre a pertinência de políticas públicas adequadas às necessidades da população quanto o sentido real das políticas de desenvolvimento para o país.As propostas de estabelecimento de políticas de ação afirmativa voltadas à população afrodescendentes são um bom exemplo. De fato, estamos vivendo um momento particularmente estimulante do debate sobre as questões sociais em nível global, sendo quase impossível mencionar quais análises e perspectivas visando a superação de problemas semelhantes não possuem fundamento adequado para a sua sustentação, aceitação e aplicação em nosso país.
Os acordos e consensos sobre as questões sociais ganharam prestígio internacional e reconhecimento suficientemente abrangente para não se deixarem abalar pela defesa dos particularismos nacionais. As experiências que culminaram em programas de ação têm sido responsáveis por uma elaboração mais coletiva sobre o conceito de desenvolvimento e pela renovação do entendimento sobre igualdade, eqüidade e participação social.
De fato, o que se tem mais claramente posto em xeque são as noções sobre o conceito de igualdade e o princípio das oportunidades iguais. O fundamental é ultrapassar as noções de cidadania política - eleger e ser eleito - para centrar-nos na idéia de cidadania social, ou seja, a prerrogativa de cada pessoa gozar de uma padrão mínimo de bem-estar econômico e seguridade social. É por isso que causa espanto e indignação as acusações de que o estabelecimento de políticas de ação afirmativa seja um privilégio. Afinal tem sido a população afro-descendente a parcela mais afetada no gozo de padrões mínimos de bem-estar econômico e seguridade social. Os mais recentes estudos sobre a situação social e econômica da população afro-descendente tem demonstrado isso de forma incontestável.